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Biografia de Ana Cañas

O excelente disco de estréia de Ana Cañas prima por ser autoral, audacioso e distante do que se convencionou denominar MPB. Amadurecida por mais de cinco anos em jam sessions na noite de São Paulo, a cantora imprime nas canções do álbum uma atmosfera jazzística, usando e abusando de um andamento musical imprevisível e inovador. Carismática, sua poderosa voz de contralto fez dela uma das grandes descobertas recentes da música brasileira, antes mesmo de gravar o primeiro disco, já sendo apreciada por gente como Chico Buarque, Toquinho, Seu Jorge e uma infinidade de jazzófilos que batem ponto no Baretto, muito provavelmente o melhor piano-bar do Brasil, onde Ana se apresentou nos últimos anos.

Talvez provenha do Baretto - onde os músicos cultivam o hábito de tocar por satisfação própria -, a liberdade e a autonomia que essa paulistana de 27 anos exibe não só ao cantar, como também ao compor. São dela, com seus parceiros, sete das dez faixas do muito bem-vindo “Amor e Caos”. Nas canções, por vezes, Ana subverte modelos de cantigas infantis para tratar da condição humana falando de si com universalismo, sem se levar tão a sério, mas também sem fazer qualquer tipo de concessão comercial. A segunda faixa, intitulada “A Ana”, por exemplo, carrega esta expressão em 25 dos 28 versos, divididos em estrofes como esta: “Foi a Ana que fez/ Foi a Ana que foi/ Foi a Ana em fá/ Foi a Ana, foi”. E a música é uma maravilha, sob todos os aspectos.

Os arranjos, que ficaram por conta de Fabá Jimenez e Alexandre Fontanetti, parceiros de Ana nas composições, esbanjam inventividade, tirando sempre que possível as sonoridades mais surpreendentes de cada instrumento. Isso desde o início da deliciosa faixa de abertura, “Mandinga não”, em que Fontanetti coloca a sua guitarra synth praticamente para silvar, no início de uma viagem que vai acabar na fantástica interpretação de Ana para “Rainy Day Women”, de Bob Dylan, em dueto memorável com o violão tenor do mesmo Fontanetti.

Além de Bob Dylan, o disco conta com uma regravação de Caetano, “Coração vagabundo”, que ficou ao mesmo tempo mais singela e arrebatadora na voz de Ana; e outra de Jorge Mautner, “Super mulher”, que conta com a luxuosa percussão de Naná Vasconcelos, outro entusiasta do trabalho da cantora, que acabou se escalando como convidado especial do álbum, depois de se encantar com a faixa “Devolve Moço”.

A propósito, “Devolve Moço” deve ter encorajado Ana a fazer um trabalho tão audacioso. Pré-lançada no Site My Space, a canção rendeu um formidável feedback obtendo em menos de três meses mais de 5 mil acessos. Mas talvez seja a impactante “Vacina na Veia” a canção que melhor traduza a coragem de Ana (“Pra onde foi? Onde ficou aquela coisa verdadeira? / O forte ficou fraco, e do homem fez-se o rato/ (...) Vacina na veia para não cair na teia (...)

Outra faceta da artista que não pode ser desconsiderada é o fato de ela ser formada em artes cênicas. Ana diz que o teatro brasileiro não perdeu nada, muito pelo contrário, com sua desistência de ser atriz para abraçar a música, mas a verdade é que ela veste e interpreta as canções de uma forma tão particular e plena que mais parece possuída por uma personagem. O vasto leque de nuances tonais da belíssima “Cadê você” explicitam esse traço da Ana cantora.

“Para todas as coisas” vale como uma auto-entrevista, em que ela cita algumas de suas admirações. Há Guimarães Rosa, Marisa Monte, Clarice Lispector e Machado de Assis, além de outras confidências tão ou mais reveladoras. Em “?” (sim é este o ‘nome’ da música), Ana também se expõe, mas só que, em vez de responder, ela apenas faz indagações. As duas canções, lado a lado no disco, corroboram o talento e a versatilidade da Ana Cañas compositora. Enfim, “Amor e Caos” deve ser saudado como um dos melhores discos de estréia dos últimos anos da música brasileira, seja pelo surgimento da compositora, seja pela afirmação da cantora.